quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Sobre o tempo

Uma vez eu tive um relógio de pulso que atrasava quando queria, estado de humor que não acontecia sempre. Eu já estava acostumado e o comparava sempre a outros antes de confiar nele plenamente, esperançoso que um dia essa mania parasse, mas não parou. Pra ele as horas ainda têm o tamanho que ele quiser; os dias e as semanas também. Ele continua em algum lugar do quarto, vivendo seu dia diferente do meu. Talvez um dia eu o torne burocrático de novo, por enquanto ainda é livre. Inspirado também por ele eu escrevi esse texto a algum tempo atrás:


BEM-TE-VI

Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz, disse agora Sant-Exupéry a meus olhos. Deixei-o ao meu lado, banco de praça, mãos novamente nas pernas e olhar inquieto. Ao lado d’O pequeno Príncipe, lado contrário meu, no banco de ripas de madeira sentavam-se, vez por outra, pessoas que em seguida sumiam entre o verde e as colorações diversas das roupas de outros e de seus carrinhos de bebê, cachorros, bicicletas... Uma gorda de meia-idade usando roupas de ginástica e arfante me descreveu um pouco de seu dia, enquanto arrumava na cabeça a faixa florida que afastava os cabelos da testa. Logo saiu. Outra mulher de diferente faixa etária ocupou o mesmo lugar e me ofertava pedaços quadrados de bolos caseiros de diferentes sabores. O cheiro cheio que me lembrava jardim podia tanto vir da cesta em seus braços quanto de uma flor grande que ela trazia atrás da orelha, acompanhando o sorriso comercial. Quando um terceiro se aproximou com música nos ouvidos e roupas claras nonde o sol se refletia, senti que aquele era um dia sortudo. Alguma coisa me aconteceria e eu esperava por ela. Antes ela podia ser qualquer coisa, agora haveria de ser uma sorte. A música que me alcançava como um sussurro sem pressa se uniu à paisagem e à tarde em volta de mim. Fechei os olhos só por um segundo, enquanto tentava ouvir como se eu mesmo usasse o fone ou como se aqueles sons viessem do chão, das árvores, da madeira do banco, como água evaporando, encontrando o céu, passando rente a tudo entre a terra e ele. Abri os olhos e o rapaz se tinha ido, mas a música continuava evaporando, ainda que ele já estivesse com um braço envolto numa árvore, de costas e distante. No seu lugar um Bem-te-vi. Mas espera... Volto o olhar. Um desenho de linhas pretas e arredondadas agora me chamava atenção na sua nuca. Os fios do fone se penduravam próximos ao pescoço e a essa distância as linhas se misturavam. Com algum tempo de observação, a rosa foi ficando nítida em seus contornos, mas pouco dela se pôde fixar na memória ante a troca de apoio feita pelo rapaz na árvore. Agora de perfil nada se via da propensa rosa tracejada. O Bem-te-vi havia subido em Sant-Exupéry, logo acima da impressão pequena e avermelhada no aro que era o mundo do pequeno príncipe. Aí não me contive, tive que sorrir e o som curto da minha respiração o afastou para um árvore próxima. Guardei o livro na mochila e voltei a olhar inquieto ao redor, pensei que a referência das flores num parque não tinha sido lá uma genialidade da sua parte. O referencial era esse mesmo: o banco de ripas de madeira mais próximo da fonte. E lá estava a fonte, à direita, transbordando água enquanto a tarde ensolarava. Cruzei o pequeno gramado e sentei na sua borda mais baixa, mochila ao lado da perna, brincando com a água nos meus dedos, ainda preocupado em fitar vez por outra o banco mais próximo. A mão foi afundando vagarosamente, cada porção de pele que submergia levitava agora num mundo de menos gravidade, e ao mesmo tempo me refrescava poro a poro, pêlo a pêlo, numa continuidade que... Não! O relógio! Presente da minha mãe, tão pouco tempo de uso! Desafivelei a pulseira e procurei water resistent no verso. Era um alívio que fosse. O estendi sobre a borda da fonte e voltei a mergulhar a mão esquerda até que a ponta dos meus dedos tocaram o seu fundo áspero. O cotovelo refrescado, a manga dobrada, os olhos fechados, logo abertos de novo à procura de alguém sobre o banco de madeira. Uma garota e um garoto, ela lia uma revista, ele se atentava a algo no braço com as sobrancelhas enrugadas. Nada florido neles. Agora 15:15 sobre a borda de concreto. 15 minutos de atraso não é muita coisa. Não é nada, 15 minutos. Na avenida principal o trânsito estava lento, e caso se venha pela direita, há uma curva onde se costumam acidentar muitos carros durante o ano. Se isso então, o trânsito pára. Mas mesmo que o motivo seja um desses, mais 15 minutos e eu vou-me embora. Depois podemos remarcar. Ou não. O sol, o vento... me dão sono. Gostaria de voltar a dormir. Talvez debaixo daquela árvore eu possa deitar e ficar de olho no banco durante os próximos... 13 minutos. E cochilar, talvez. Afinal, o dia está sortudo e lento, tão detalhado. Ou os meus sentidos estão mais apurados e captam mais coisas que o habitual ao redor, e tudo de uma vez, como se a minha presença fosse a de Deus e eu estivesse em todo aquele parque ao mesmo tempo. Se isso acontecia, porque então eu não via nada que usasse uma flor na cabeça? Sono. Desde o princípio do dia, o dia foi assim. Abri os olhos e era cedo, juro, mas o corpo não se mexia na cama, só os cílios piscavam. E a cada piscadela se passavam meia-hora, duas horas, mais meia-hora. Os sonhos estavam todos grudados em minha pele. Falavam do meu joelho sobre o lençol, da textura do travesseiro, do cabelo sobre a bochecha, as roupas e o cobertor jogados no chão. Não iam muito além dali. A uma da tarde eu olhei o relógio de pulso e decidi levantar, tomar banho, vesti um short, uma camiseta e dois tênis, pendurei a mochila; vi o Sant-Exupéry sobre a mesa da cozinha – me veio a frase – e o trouxe entre as outras muitas coisas sacolejantes da mochila pelo asfalto sob a bicicleta. Duas horas e vinte minutos se passaram desde então, mas nada mudou de verdade. São só mais cinco minutos antes de eu voltar a pilotar o meu guidão rumo a minha cama. Será que eu sonharia com flores? Com o meu encontro? Com o desencontro?
Eu continuo vestido daquela camiseta branca com os balões coloridos, aquela que eu te disse, aquela que eu te descrevi, aquela que é meu estandarte pra você me conhecer, você lembra? Eu acho que não... Agora, às 15:30, eu realmente acho que não. Talvez depois, daqui a anos, eu esteja deitado, inventando suas desculpas pra hoje e adivinhando lugares para você estar, mas hoje eu só desejo voltar pedalando ao meu portão, abrir as janelas e voltar a dormir até que um amigo me ligue me acordando para sempre de qual seria o seu rosto e roupas. Sempre. Ou não. Vejo novamente o relógio, me levanto já atrasado e o banco ainda está lá, de madeira, habitado por um homem que lê um livro sobre planetas e veste balões coloridos enquanto pensa em flores e ouve músicas que vêm do chão, rodeado por pessoas que vem e que vão tão rápidas como se nunca existissem. Mas o seu lado não está mais vazio, há um olhar que sorri, outro, saudações, eles percebem os balões, a criancinha sobre os ombros, vamos conversar enquanto andamos?, Você até que se parece com você, o nome dela é Camélia, prazer, a bicicleta levada pelas duas mãos, mochilas nas costas, a criança que corre. Pisco. Sigo do banco ao bicicletário. Estou mais nostálgico do que de costume, e a nostalgia me desperta o sono, nunca as miragens. Só vivo o que é real e o que é pequeno, como uma joaninha ou uma gota d’água, o pedal e o colchão. Mas antes disso... porque estou mesmo preocupado com aquele edifício à minha frente? Será porque no alto dele existe um relógio digital? Ou porque em letras maiúsculas e alaranjadas ostenta na fachada Não durma no ponto, venha agora de metrô ao Parque Bem-te-vi. Uma nova e moderna estação para você? Sobrancelhas franzidas, lábio mordido, olho meu relógio de pulso, tão discreto ele, mas bonito, preto, fivela prateada, ponteiro branco, nada apertado, eu não suportaria. Me demoro nele, e de uma vez fito os números digitais próximos ao céu. Eles zombam 16:49 lá de suas alturas, me esmagam como um inseto, endeusados, rodeados de nuvens, de anjos sem trombetas, calados, amordaçados. Do meu discretíssimo aro do tempo, 15:37; o meu pulso, que já havia descido da altura dos meus olhos e pendia agora próximo à minha cintura. Eu era passado, você presente. Sono; nostalgia; o banco só, ora um, ora outro, agora só; o amigo que me ligará e me fará esquecer... Agora você passado e eu presente.

Por Mário Luz

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

CINEMA-CÃO


Por Mário Luz

Há poucas horas assisti ao primeiro longa do cineasta Alejandro González-Iñárritu, Amores brutos, mas sejamos literais na tradução do título espanhol de Iñárritu e, com isso, iremos ao cerne da questão e do filme. Amor cão, como se diz em Portugal. Agora sim, todos tendo consciência do título-tema, podemos, poderei me expressar. Expressar o meu sentimento-cão, aqui, rosnando pra correr pra fora.
Eu poderia começar pela técnica incrivel do filme e puxar fluidamente o fio seguinte do que eu senti, o que esse cineasta de uma década de trabalho é capaz de descobrir de mim, de nós. Mas não há apenas Amor cão, ele é só o primeiro de uma bem-sucedida fórmula para aquecer Mário. Aquecer com o frio cru que é sua especialidade. A crueza de um mundo apenas de acasos, de falta de entendimento, de sofrimentos constantes, de desencontro, de desespero, da morte que virá num momento ou outro... Não há nada além da vida comum em todo lugar, nenhum drama a mais.
E aí que depois de Amor cão veio 21 gramas e Babel (onde minha fome cinéfila parou - por enquanto). Temos três filmes e um mundo cão que se apresenta a todos eles. As personagens abraçam devagar o público, mostrando suas feridas e manchas, mas o abraço é carinhoso, repleto da pele quente de uma pessoa real, e por isso, quando Iñárritu simplesmente os mata ou amputa ou lhes despeja uma gota de sofrimento-surpresa da maneira mais apática possível, como um Deus entediado, apenas narrando o fato que é interpretado com as vísceras de algum bom ator qualquer, apunha-la o peito do espectador na escuridão da sala onde as pequenas letras de luzes brancas sobem. Mas nem tudo é dor nessa relação de gente ficional e gente real, ou eu poderia dizer gente real x gente mais real ainda. Há beleza também. Ela existe, um pouco escondida, claro, mas existe e entremeia o filme, chegando a uma forma quase concreta no fim. Porque a dor assume a aparência de uma escada, não é? Não pra quem a sente agora. Mas se depois dela você olha pra trás - surpresa! - já foram três ou quatro degrais dos aprendizados da vida escada acima. Dessa forma as personagens entendem. Entendem coisas sobre si mesmas, sobre quem as rodeia, sobre o mundo. Eu teria que contar cada história pra que vocês entendessem o que elas entendem.
Tecnicamente a estrutura de cenas, fragmentadas como um quebra-cabeça no caso de 21 gramas; linear, mas dependendo da visão de cada personagem pro todo ter sentido como acontece em Amor cão; e entrecortado em sua simultaneidade de várias personagens e histórias, caso de Babel, obriga a mente telespectadora a trabalhar, a estar presente em todos os segundo do filme pra que nada passe desapercebido. Mas é preciso assistir a Alejandro González-Iñárritu ou as minhas palavras ficarão desfocadas pra vocês, leitores. O que eu disse será forma e abstração. Portanto espero que assistam e sintam lá o que Deus quiser.