quinta-feira, 5 de maio de 2011

Tiê



Eu queria falar da flutuação, como um balão vermelho ou azul ou amarelo contra o verde de um gramado. A bexiga é atada no seu pólo sul por uma linha que puxa a mão de uma menina pro alto. E ela quase vai, flutua junto. Mas por enquanto ela, de vestido simples, apenas mantém o balão colorido um pouco acima de sua cabeça, como um pensamento ou uma ideia estendida dos fios de cabelo, e ela mesma se percebe numa história em quadrinhos e sorri. De dentro do seu balão, enquanto a menina brinca de pular as sombras das árvores, brota o quinto andar de um edifício que diz lá de cima poder ver duas pessoinhas apontando o céu; noutro instante brotam malas, mapas, caminhos, duas mãos que se balançam um pouco; aí alguém aperta os olhos e vê em inglês aquela frase que termina em francês, e de um rompante do balão germinam uma mesa posta, uma vidraça, a esquina de um hotel, uma dançarina que sai e deixa as xícaras de café vazias enquanto recita pequenas canções... tudo só acaba quando as linhas do desenho se modificam de pássaro pra aviãozinho de papel, quando percevejo vira astronauta e chinês vira sorvete. Os traços pretos já não se contentam com um só desenho por vez e dentro do balão uma rede de varanda é só a perna de uma moça estirada pra fora da cama em que um casal sonha bolhas de ar floridas de canteiros de um pátio de colégio onde crianças brincam de pegar e logo está a menina com seu balão, brincando também pelo gramado que é verde.



Ouvi dizer um outro dia que depois que a gente cresce o coração morre. Deve ser verdade pelo que eu tenho visto e sentido. Ele morre. Só não sinto assim, mesmo que eu saiba que ele esteja morto há quase uma década, quando ouço o passarinho cantar. O seu nome é Tiê, que quer dizer sabedoria em japonês e que tem a cor avermelhada da gota de sangue dos corações mortos-vivos no interior da mata atlântica. ouço ela cantar, fico um bom tempo assim, e então até flutuo um pouco, saio um pouco do chão, mas só um pouquinho, quase esqueço do peso morto desse coração que logo vai me descer de vez. Ouço, flutuo, desço, ouço, flutuo, desço ouço flutuo desço ouço flutuo desço ouço flutuodesçoouçoflutuodesçoouçoflutuodesçoouçoflutuodesço e é por isso que ouço, como as outras pessoas ouvem os outros passarinhos pra compartilhar do mesmo vício musical. "Mas eu tô feliz, eu juro pelo meu irmão".








Por Mário Luz